Estudos teológicos - A tarefa missionária em meio às diferenças culturais

A tarefa missionária em meio às diferenças culturais

Jesus Cristo veio ao mundo, morreu, ao terceiro dia ressuscitou e subiu ao céu deixando a promessa que um dia voltaria do mesmo modo como subiu. Mas antes de subir deixou uma ordem expressa nos evangelhos chamados sinóticos: "Portanto, ide, ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo." (Mt 28.19); "E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda a criatura." (Mc 16.15); "[...] e em meu nome, se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações começando por Jerusalém." (Lc 24.47). Esta ordem também está presente no livro de Atos dos Apóstolos: "Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra." (At 1.8).
Eis aí a maravilha e o desafio do cristianismo. Como cumprir esta ordem levando o evangelho, a Palavra de Deus, até os confins da terra? Como apresentar Jesus a outras culturas, povos, línguas e nações? Como comunicar a verdade sem deixá-la perder a sua essência? Este é o maior desafio daqueles que se dispõem a cumprir esta ordem deixada por Cristo.

Primeiros passos

Todo missionário antes de pregar o evangelho em uma cultura que lhe é estranha precisa aprender, ou seja, conhecer sobre a cultura onde ele irá trabalhar. Sobre isso o Rev. Gildásio Reis afirma:
Dificilmente uma pessoa poderá sentir as dificuldades do trabalho missionário a menos que esteja envolvida ativamente neste campo. Tais dificuldades parecem ser maiores quando o trabalho missionário se dá em uma outra cultura que não a do missionário. As diferenças culturais e as surpresas são incalculáveis. De maneira nenhuma, o missionário pode comunicar bem o evangelho, se ele desconhecer a cultura das pessoas que irão ouvi-lo.(1)
Logo, o primeiro passo para qualquer pessoa que esteja envolvida no trabalho missionário, em outra cultura, é conhecer essa cultura para que possa transmitir a mensagem de forma clara para que as pessoas possam entender. Pois falta de sensibilidade por parte do missionário pode tornar essa tarefa, além de difícil, improdutiva. Sobre isso Bruce Niholls afirma o seguinte:
Os comunicadores evangélicos frequentemente subestimam a importância dos fatores culturais na comunicação. Alguns se preocupam tanto com a preservação da pureza e das suas formulações doutrinárias que tem sido insensíveis aos padrões de pensamento e comportamento culturais das pessoas às quais proclamam o evangelho.(2) 
A importância de se transmitir algo que se entenda é fundamental, até porque "comunicação não é o que você fala, mas o que o outro entende. Se o outro não está entendendo, você não está comunicando direito." (3). E isso quando se dá em outra cultura é muito mais difícil. Pois se nós muitas vezes já temos dificuldade de nos entendermos dentro de uma mesma cultura que nos é familiar, imagina ter de enfrentar as barreiras de comunicação que são impostas por uma cultura estranha. O Rev. Gildásio fala que:
É inquestionavelmente e universalmente aceitos entre os missiólogos e missionários, que é praticamente impossível comunicar o evangelho de maneira que faça sentido em circunstâncias transculturais sem que seus comunicadores conheçam a cultura daqueles que eles desejam alcançar.(4)  
Parece uma besteira se preocupar em aprender o que o outro entende como certo e errado, como morte e vida, como Deus. Mas é fundamental para que a palavra, ou seja, a semente lançada caia em boa terra e dê frutos. Para tal precisamos entender o que é cultura.

A cultura

"Conjunto de comportamentos e ideias característicos de um povo, que se transmite de uma geração a outra  e que resulta da socialização e aculturação verificadas no decorrer da sua história." (5) Ou também "[...] um sistema integrado de padrões comportamentais aprendidos, compartilhados e transmitidos de geração em geração, que distinguem as características de uma determinada sociedade." (6)
Essas ideias apresentadas sobre cultura de um povo, ou seja, o aglomerado de tudo aquilo que é caraterística intrínseca de um povo que vem de gerações, e é natural: como língua, modo de vestir, noções de moral e ética, crenças; faz-nos entender que muitas vezes o que é certo para um não é para o outro. E assim como os valores morais mudam, os valores de crenças também. Pois o que é pecado para um, para outro não é. O conceito sobre Deus, céu, inferno, morte e salvação são diferentes também. Não é só a barreira da língua que precisa ser vencida, mas também a da compreensão.

Colocando em prática

Agora que sabemos o que é a cultura de um povo, e que para comunicar o evangelho em uma cultura diferente o missionário precisa conhecer essa cultura, fica a questão depois de conhecer a cultura. O que fazer? Como colocar em prática? Como contextualizar a mensagem de uma forma coerente?
O Pr. Ebenézer Bittencourt no DVD Quebra de Paradigmas, diz: "Nós precisamos aceitar o desafio de adaptar métodos [...] o evangelho é inegociável. [...] Mas nós temos que ter sensibilidade cultural." (7) Ou seja, não existem regras que determinem métodos de como comunicar o evangelho. O que deve nortear o missionário quanto a métodos é a sensibilidade cultural. A única exigência inegociável é a essência do evangelho. Logo, o missionário pode e deve alterar o método quando necessário, mas nunca abrir mão da essência das escrituras, tendo em mente sempre de que ele é apenas um simples mensageiro, uma fonte secundária, nunca uma fonte primária.
Sobre as estratégias de evangelização o pacto de Lausane diz o seguinte:
O desenvolvimento de estratégias para a evangelização mundial requer metodologia nova e criativa. Com a benção de Deus, o resultado será o surgimento de igrejas profundamente enraizadas em Cristo e estreitamente relacionadas com a cultura local. A cultura deve sempre ser julgada e provada pelas escrituras. [...] O evangelho não pressupõe a superioridade de uma cultura sobre a outra, mas avalia todas elas segundo o seu próprio critério de verdade e justiça, e insiste na aceitação de valores morais absolutos, em todas as culturas. As missões muitas vezes têm exportado, juntamente com o evangelho, uma cultura estranha, e as igrejas, por vezes, têm ficado submissa aos ditames de uma determinada cultura, em vez de às Escrituras. Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente, procurar esvaziar-se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim de se tornarem servos dos outros, e as igrejas têm de procurar transformar e enriquecer a cultura; para a glória de Deus.(8)
Uma das coisas que atrapalham o desenvolvimento do trabalho missionário em outra cultura é exatamente o fato de o missionário tentar infiltrar a sua própria cultura na cultura aonde ele foi inserido, e que lhe é estranha. Ronaldo Lidório comenta o seguinte:
Olhando as frentes missionárias despreocupadas com a contextualização encontraremos, abundantemente, templos de cimento para culturas de barro, pianos de cauda para povos dos tambores, terno e gravata para os de túnica e turbante, sermões lineares para pensamentos cíclicos, sapatos engraxados para pés descalços. Tão ocupados em exportar nossa cultura nos esquecemos de apresentar-lhes Jesus, Deus encarnado, totalmente contextualizado, luz do mundo.(9)  
Na Bíblia nós temos um exemplo clássico do jeito correto de se contextualizar o evangelho para uma outra cultura, e o nome desse exemplo é "Paulo". O apóstolo Paulo viajou para diversos lugares, se deparando com diversas culturas, línguas e crenças totalmente diferentes da cultura que lhe era a de origem. Mas soube como ninguém conhecer a cultura onde estava inserido e trazer mensagem de forma clara e contextualizada para aquela cultura, como no caso magistral de seu discurso no areópago, onde utilizou da própria cultura grega, inclusive citando poetas gregos como forma de demonstrar conhecimento daquela cultura, para anunciar o evangelho.
Um exemplo errado que temos na Bíblia é o caso de alguns cristãos judeus, que queriam a todo custo que os gentios que se convertessem ao cristianismo fossem circuncidados como mandava a lei mosaica. O apóstolo Pedro precisou de uma visão do céu para entender que estava fazendo da forma errada.
Mas fica claro que este é um grande desafio de nossos dias. A tarefa de anunciar o evangelho de forma que o outro entenda sem deturpar a mensagem e evitar o efeito "telefone sem fio", onde a mensagem começa certa, mas termina errada.
O Pr. Ebenézer Bittencourt conta que um missionário que trabalhava com os índios de um tribo brasileira, ao lhes falar sobre João 3.16, eles não entendiam, porque quando chegava a parte do perecer, ou seja, morrer, eles não entendiam. Pois na cultura deles morrer era algo bom, pois eles acreditavam que se transformariam em outra coisa. Diante dessa barreira o missionário pensou como traduzir aquilo de uma maneira que eles entendam e que não ferisse o sentido da mensagem. E ao observar aquela cultura notou que para eles a coisa mais imunda e ultrajante que eles repudiavam era uma banana podre. A partir daí aquele missionário disse a eles: "Que Deus mandou seu filho ao mundo para que todo aquele que nele crer, não vire uma banana podre [...]", a tribo entendeu, mas aquele missionário se mostrou preocupado, pois sabia que ninguém entenderia o dilema que ele viveu.(10)
Não existe uma fórmula pronta de como fazer, o que deve prevalecer nessa tarefa missionária é o bom senso do missionário, tanto para a cultura onde ele está inserido, como para com a essência da mensagem bíblica.

Citações:

(1) - Apostila de Missiologia, p. 27.
(2) - Apostila de Missiologia, p. 27.
(3) - DVD Quebra de Paradigmas na Comunicação, Pr. Ebenézer Bittencourt.
(4) - Apostila de Missiologia, p. 27.
(5) - Apostila de Missiologia, p. 32.
(6) - Apostila de Missiologia, p. 32.
(7) - DVD Quebra de Paradigmas na Comunicação, Pr. Ebenézer Bittencourt.
(8) - Apostila de Missiologia, p. 32.
(9) - LIDÓRIO, Ronaldo. A teologia bíblica da contextualização (contextualização missionária), p. 32, 33.
(10) - DVD Quebra de Paradigmas na Comunicação, Pr. Ebenézer Bittencourt.

Referências bibliográficas:

Apostila de Missiologia. Disponível em: <http://www.seminariojmc.br/datafiles/documentos/Apostila%20de%20Missiologia%20JMC%202006b.pdf>. Acesso em: 21 jun. 2012

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição revista e corrigida no Brasil. São Paulo. Sociedade Bíblica do Brasil, 1995.

BURNS, Bárbara Helen (Ed.). Contextualização missionária: desafios, questões e diretrizes. São Paulo, Vida Nova, 2011.

QUEBRA DE PARADIGMAS na comunicação. Produação: Instituto Haggai. São Paulo: Haggai, 2008. (90 min), DVD.

(Pr. Julio Cezar da Silva Cindra)

Estudos teológicos - A responsabilidade missionária de Israel

A responsabilidade missionária de Israel

O cristianismo em todo o mundo tem como um de seus pilares principais a obra de evangelização, ou seja, a obra missionária. E nós conhecemos a história de Jesus e sobre a ordem deixada por Ele para seus discípulos, mais conhecida como o "ide", também chamada de a "grande comissão" que está registrada nos evangelhos chamados sinóticos (Mt 28.18-20; Mc 16.15-18; Lc 24.46-48), e também em Atos dos Apóstolos (At 1.8). Muitos pensam que missões começa aí. Bem, na vida da igreja cristã sim, pois a igreja começa ao mesmo tempo, o "ide" faz parte do início da igreja. Mas é um erro afirmar que missões só começa a fazer parte do projeto divino de Deus partir daí.
Se pensarmos que missões no projeto divino, começa com o "ide", estaremos também pensando que o povo de Israel nunca fez parte de tal projeto de forma ativa, no máximo passiva como o povo de onde veio o Cristo.
Mas será que missões realmente começa com o "ide"? Será que Israel era apenas figurante nesse projeto elaborado pelo próprio Deus? Para entender a importância de Israel nesse contexto e sua responsabilidade nele, precisamos descobrir o que é missões, onde começa missões e qual sua verdadeira origem. Será que o "ide" é o início de um projeto divino, ou um cumprimento de um projeto começado muito antes? Vamos procurar responder estas perguntas.

O nascimento de missões

Ao contrário do que se imagina e do que se é ensinado por aí, missões é muito anterior ao "ide", a "grande comissão", missões tem sua origem no coração de Deus. Mas como entender isso? Voltemos a criação.
Eugene Merrill afirma que "[é necessário entendermos que] Deus não criou o universo como objeto de escrutínio acadêmico, mas como a arena na qual Ele pode revelar algo da natureza e dos intentos d'Ele."(1)
Em Gênesis, no princípio, Deus criou todas as coisas, mas dessas coisas que Ele criou entre céu, terra, mar, animais, nós vemos que de todas as coisas que Ele criou, uma é especial para Ele. Em uma dessas criações de Deus, Ele fez questão de fazê-la conforme a sua imagem e semelhança (Gn 1.27, 28), soprando nela seu fôlego de vida (Gn 1.26; 2.7).
A intenção de Deus em criar o homem, sua coroa da criação, era a de que o homem se relacionasse com Ele, um ser capaz de pensar, se comunicar e entender as manifestações desse Deus que lhe deu a vida. Mas nesse percurso algo deu errado, o pecado entrou na história humana, distorcendo essa imagem de Deus com a qual o homem foi criado, e abrindo um abismo que levou o homem a se afastar de Deus. Essa história é narrada na Bíblia como a queda do homem (Gn 3). Colocamos homem aqui, mas porque foi Adão que desobedeceu. Mas a Bíblia nos é clara quando coloca que ele foi a porta por onde o pecado entrou na humanidade inteira (Rm 5.12). Timothy Carriker vai descrever a preocupação universal de Deus com o projeto missionário assim:
Destaca-se aí a amplitude da preocupação de Deus e, por conseguinte, o palco de missões. Nada menos que o mundo inteiro pertence à esfera do interesse de Deus. Antes de ser uma preocupação mais restrita, a preocupação é basicamente universal. Antes de ser o Deus de Israel, Ele é o Deus do universo. Antes de ser o Deus da igreja, é o Senhor de tudo.(2)
Missões nasceu no coração de Deus, como uma resposta direta e objetiva a queda do homem diante do pecado. E seu objetivo era universal sim desde o princípio. Jesus vai comprovar isso ao dizer que sua vinda que era anunciada há muito tempo pelos profetas, era um cumprimento de um plano de Deus por amar o mundo inteiro (Jo 3.16).
Então sabemos que um plano de restaurar e ligar esse homem perdido novamente a seu criador foi colocado em prática, mas Deus precisava de ferramentas para fazer com que esse homem perdido, o conhecesse e o reconhecesse como aquele de quem se afastou por causa do pecado. 
[Pecado esse que aumentou tanto que levou Deus a dizer]: "Chega! Vou acabar com toda a raça humana e começar tudo de novo com uma só família"(3)
Em Noé, já vemos um tipo de missões narrada pela Bíblia. Mas surgem três agravantes ao processo missionário: a confusão das línguas, gerando uma distribuição geográfica gigantesca e criando culturas; o aumento da população, cumprindo o frutificai e multiplicai-vos (Gn 9.1); e a difusão de lendas, criando falsas religiões e falsos deuses tirando o homem do verdadeiro caminho. Tudo isso sem contar o aumento da prática do pecado em todo o mundo.

A eleição para o serviço

A Bíblia vem narrando a história da humanidade e falando universalmente até Gênesis 11, e a partir daí as atenções se concentram  em um homem: Abraão. De Gênesis capítulo 12 em diante a Bíblia começa a narrar a história desse homem semita que deu origem à nação de Israel, e de como esse homem foi escolhido por Deus para testemunhar desse Deus de forma magnífica entre as nações.
Deus agora escolhe um homem para através dele, divulgar a extensão das suas obras e do seu amor. Abraão respondeu a esse chamado com fé, entretanto esse chamado não era um fim em si mesmo, ele era um meio para um fim que seria cumprido muito tempo depois. Agora Abraão tinha uma missão: "ser benção" (Gn 12.2), e este chamado seria estendido a todos os seus descendentes, dando a Abraão o nome de Pai da Fé (Gn 22.18). Sobre isso Carriker diz: 
Este chamado de Abraão repetiu-se para seus descendentes [...] Esta "descendência" refere-se [...] Em primeiro lugar, ao povo de Israel. A missão de Abraão passou também a seus descendentes, pois o chamado à missão repetiu-se tanto para Isaque (Gn 26.2-4) quanto para Jacó (Gn 28.13-14) e José (Gn 49.22).(4)
E ele continua:
[...] desde o início, o chamado de Israel como nação foi feito a fim de alcançar todas as famílias, ou seja, todas as nações da terra. O propósito de Deus no levantamento de Israel era mostrar ao mundo, mediante sua história, o caminho da salvação, e assim levar todos os povos a gozar esta benção. O foco no mundo uma vez mais se destacou. Esta ênfase nunca se perdeu no Antigo Testamento, embora, às vezes, tenha sido obscurecida. A história de Israel é uma história de missões.(5) 
Ao longo da história de Israel ia ficando claro que o propósito de Deus iria levar a algo muito maior, pois o objetivo de seu projeto era e sempre foi alcançar todas as nações. Nos episódios do Êxodo podemos ver os milagres realizados por Deus para libertar o seu povo "escolhido". E os milagres também tinham um propósito. 
Carriker afirma que "os milagres de Deus não objetivavam algo para Israel, mas eram uma forma de conduzir as nações à salvação."(6)
Após os episódios do Mar Vermelho e do Rio Jordão, Josué diz: 
Porque o Senhor, vosso Deus, fez secar as águas do Jordão diante de vós, até que passásseis, como o Senhor, vosso Deus, fez ao Mar Vermelho, ao qual secou perante nós, até que passamos. Para que todos os povos da terra conheçam a mão do Senhor é forte, a fim de que temais ao Senhor, vosso Deus, todos os dias. (Js 4.23-24).
A intenção era fazer com que os povos temessem a grandiosidade de Deus. 
Pois o "'temer', para o hebreu, significava aliança que tinha quanto à sua fé, assim como, hoje em dia, o termo popularmente usado é 'religião'".(7) 
Davi foi outro que entendeu este conceito de fazer os outros povos saberem que existia um só Deus, e que este Deus queria que todos os povos o conhecesse e o seguisse pela fé para a salvação. Davi expressou isso ao enfrentar Golias:
Davi, porém, disse ao filisteu: Tu vens a mim com espada, e com lança, e com escudo; eu, porém, vou contra ti em nome do Senhor dos Exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado. Hoje mesmo, o Senhor te entregará nas minhas mãos; ferir-te-ei, tirar-te-ei a cabeça e os cadáveres do arraial dos filisteus darei, hoje mesmo, às aves dos céus e às bestas-feras da terra; e toda a terra saberá que há Deus em Israel. (1Sm 17.45-46, grifo meu) 
Muitos salmos davídicos também expressam esta mesma consciência missionária da parte de Israel, de representar a Deus diante das nações. Alguns deles são: 66, 72, 86, 96, 98 e especialmente o verso primeiro do 117.
Carriker nos mostra também que Salomão, ao orar dedicando o templo a Deus, expressou a mesma "visão missionária" a respeito de Israel:
Ouve tu nos céus, lugar da tua habitação, e faze tudo o que o estrangeiro te pedir, a fim de que todos os povos da terra conheçam o teu nome, para te temerem como o teu povo de Israel e para saberem que esta casa, que eu edifiquei, é chamada pelo teu nome. (1Rs 8.43, grifo meu) 
O profeta Isaias também fez menção a universalidade do projeto divino, e como o templo também fazia parte desse projeto:
Aos estrangeiros que se chegam ao Senhor, para o servirem e para amarem o nome do Senhor, sendo deste modo servos seus [...] também os levarei ao meu santo monte e os alegrarei na minha Casa de Oração; os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceitos no meu altar, porque a minha casa será chamada Casa de Oração para todos os povos. Assim diz o Senhor Deus, que congrega os dispersos de Israel: Ainda congregarei outros aos que já se acham reunidos. (Is 56.6-8, grifo meu) 
Como eu havia chamado a atenção anteriormente, o povo muitas vezes deixava de lado tal responsabilidade missionária, tendo que ser chamado novamente a essa responsabilidade pelos profetas, que traziam sempre à lembrança do povo de Israel o seu verdadeiro sentido de serem "eleitos" por Deus. 
Sobre isso Carriker afirma que "os profetas chamavam o povo de Israel para voltar a essa visão universal de Deus, pois Israel tendia a ter uma perspectiva nacional e exclusivista."(8)
A "eleição" no Antigo Testamento se difere em significado do tipo de eleição impregnado em nossa mente nos dias atuais, muito difundida pelo novo olhar lançado à luz do Novo Testamento. Essa "eleição" tinha por finalidade, no Antigo Testamento, um propósito de serviço. Era uma eleição para serviço. Diferente do sentido de "eleito" que temos hoje, que nos traz a mente um sentido soteriológico, de salvação.
O povo de Israel sabia de sua eleição, e de que essa eleição era um chamado a um serviço designado pelo Senhor. Mas essa consciência de escolha Divina por eles em meio a tantos povos, certas vezes culminava em orgulho que Th. C. Vriezen chama de "sentimento de eleito".(9) Vriezen também nos chama a atenção que muitas vezes essa dificuldade de entendimento pode ter sido ocasionada pelo paradoxo que existe entre o propósito da eleição e a advertência de Deus sobre não terem ligações com outras nações (10). Isso pode ter gerado uma confusão na interpretação dessa eleição. Pois como Deus os escolheria para servir a Ele e as outras nações, se ordenou que não tivessem ligações com as mesmas?
A resposta é simples. Deus levantou Israel para mostrar que existe um único Deus, um único caminho, uma única porta para a salvação do homem. E as nações estrangeiras por estarem afastadas de Deus, criaram em suas culturas lendas, e deuses que acreditavam serem os verdadeiros senhores. E era isso que Deus não queria que Israel absorvesse. A vontade de Deus era que Israel influenciasse o mundo, e não que fosse influenciado pelo mesmo.
Esse "sentimento de eleito", que Vriezen aponta, surgia de um olhar errôneo da doutrina da eleição que muitas vezes levava o povo a se sentir superiores as outras nações, e esse não era o propósito divino. O verdadeiro propósito da eleição era o de servir a Deus e às outras nações. Lógico que o relacionamento entre Javé e Israel é muito importante, mas não é tudo, pois o propósito divino é mais completo. É levar as outras nações a também terem um relacionamento com Ele. 
"Em Israel, Deus buscava o mundo. Isso é o que nos mostra vozes como Rute, Jonas e (Segundo) Isaías"(11)
Os profetas sempre evidenciaram esta responsabilidade de Israel. Carriker diz:
Jeová seria o Deus da salvação de todos: "Olhai para mim, e sede salvos, vós, todos os termos da terra" (Is 45.22); "diante de mim se dobrará todo joelho" (Is 45.23). O profeta Sofonias reconhecia esta perspectiva: "Então darei lábios puros aos povos, para que todos invoquem o nome do Senhor, e o sirvam de comum acordo". Assim também Malaquias: "Mas desde o nascente do sol até o poente é grande entre as nações o meu nome..." (Ml 1.11). Aos estrangeiros é dado o título "povo de Deus" (Os 2.23) (12)
Sobre esta eleição iniciada há muito tempo com o chamado de Abraão, Walter Kaiser afirma que: 
Deus deu uma promessa a Abraão, e, através dele, à humanidade inteira; uma promessa eternamente cumprida e se cumprindo na história de Israel; e principalmente cumprida em Jesus Cristo, sendo Ele aquilo que é principal na história de Israel. (13) 
 Esta eleição de Israel para o serviço a Deus como missionários entre os povos, sempre apontava para frente, para um futuro. O que viria a seguir seria um cumprimento de um processo iniciado com aquele povo há muitos anos atrás. Em muitas coisas no Antigo Testamento nós vemos o anuncio de um Messias, que no pensamento israelita viria para libertar o povo de exércitos e liderá-los entre os povos. Como está em Zacarias "Ele anunciará paz às nações; o seu domínio se estenderá de mar a mar, e desde o Eufrates até as extremidades da terra."(Zc 9.10)
Mas no objetivo divino, viria para libertar todos os povos do pecado que os afastou de Deus no início e dar a eles a oportunidade de serem feitos, não somente servos, mas, filhos desse Deus maravilhoso. Kaiser nos mostra que o Apóstolo Paulo entendeu a responsabilidade que pairou nos ombros de Israel no passado e que esta se cumpriu em Jesus Cristo, e continua se cumprindo até hoje:
Paulo fez com que os crentes gentios fossem parte da "família de Deus" (Ef 2.19) e parte do "descendente de Abraão" (Gl 3.16-19). Além disto, chamou-os de "herdeiros" conforme a promessa (Gl 3.19), "herança" esta que era parte da "esperança do seu chamamento" (Ef 1.18) e parte da "eterna aliança" dada a Abraão (Hb 9.15). Assim, os gentios, que eram "separados da comunidade de Israel" (Ef 2.12) "estrangeiros e peregrinos" (v.19) às "alianças da promessa" (v.12), foram levados a co-participar em parte das bênçãos de Deus. (14)
E Kaiser continua:
[...] O que Paulo está ensinando é que os crentes gentios foram "enxertados" na oliveira judaica (Rm 11.17-25) e feitos "co-herdeiros, membros do mesmo corpo e co-participantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho" (Ef 3.6). Sendo que "a salvação vem dos judeus" (Jo 4.22) e sendo que há apenas um aprisco, um Pastor, e, ainda, "outras ovelhas, não deste aprisco" (Jo 10.16) não seria muito surpreendente ver os escritores do NT acrescentando à tese emergente do AT que havia apenas um povo de Deus e um programa de Deus embora houvesse vários aspectos daquele povo único e programa único. (15) 
Este sempre foi o propósito de Deus, expressado por Jesus, e em Jesus. E então nós vimos surgir em Jesus não uma proposta missionária universal, pois tal proposta já existia, mas sim o desafio de elevar esta proposta a níveis mais altos. O objetivo agora é avançar, sair de nossa "zona de conforto" e alcançar cada vez mais longe.
E voltamos ao nosso ponto de partida, o "ide". E podemos perceber que ali foi o cumprimento do projeto e não o seu início. E que o papel de Israel nesse projeto, foi muito maior do que o de apenas observar tudo inertemente. Ou de querer gloriar-se por ser o povo escolhido para desfrutar das bençãos de Deus. Mas o papel de Israel era o de mostrar ao mundo esse Deus maravilhoso que tudo criou, e, como Ele se importava com todas as nações. Lógico que a revelação progressiva de Deus através da história pode ter feito Abraão entender menos deste propósito do que José, Moisés, ou até mesmo Davi.
Mas o autor de Hebreus é bem claro que pela fé eles creram no Messias, em quem todas as alianças foram cumpridas. E agora, podemos dizer que o "ide" é o aperfeiçoamento de um projeto dado a um povo escolhido, que mesmo com suas falhas executou sua missão, graças a fibra e fé, de homens que não deixaram a chama se apagar em seus corações. E a responsabilidade do Israel do Antigo Testamento, dá lugar agora a responsabilidade do Israel que surge à luz de Cristo no Novo Testamento, a Igreja! 

Citações:

(1) - MERRILL, Eugene H.. Teologia do antigo testamento, p. 137.
(2) - CARRIKER, C. Timothy. Missões na bíblia: princípios gerais, p. 8.
(3) - CARRIKER, C. Timothy. Missões na bíblia: princípios gerais, p. 11, 12.
(4) - CARRIKER, C. Timothy. Missões na bíblia: princípios gerais, p. 14.
(5) - CARRIKER, C. Timothy. Missões na bíblia: princípios gerais, p. 14, 15.
(6) - CARRIKER, C. Timothy. Missões na bíblia: princípios gerais, p. 15.
(7) - CARRIKER, C. Timothy. Missões na bíblia: princípios gerais, p. 15.
(8) - CARRIKER, C. Timothy. Missões na bíblia: princípios gerais, p. 17.
(9) - VRIEZEN, Th. C., 1953, apud, SMITH, Ralph L., Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem, p. 120.
(10) - VRIEZEN, Th. C., 1953, apud, SMITH, Ralph L., Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem, p. 120.
(11) - VRIEZEN, Th. C., 1953, apud, SMITH, Ralph L., Teologia do Antigo Testamento: história, método e mensagem, p. 119.
(12) - CARRIKER, C. Timothy. Missões na bíblia: princípios gerais, p. 17.
(13) - KAISER, Walter C.. Teologia do Antigo Testamento, p. 271.
(14) - KAISER, Walter C.. Teologia do Antigo Testamento, p. 277.
(15) - KAISER, Walter C.. Teologia do Antigo Testamento, p. 271, grifo do autor.


Referências Bibliográficas

BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2ª Ed, Barueri, Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. Edição Revista e Atualizada no Brasil.

CARRIKER, C. Timothy. Missões na bíblia: princípios gerais. São Paulo, Vida Nova, 1999.

KAISER, Walter C. Trad. Gordon Chown. Teologia do Antigo Testamento, 2ª Ed, São Paulo, Vida Nova, 2007.

MERRILL, Eugene H. Trad. Helena Aranha, Regina Aranha. Teologia do antigo testamento, São Paulo, Shedd Publicações, 2009.

SMITH, Ralph L. Trad. Hans Udo Fuchs, Lucy Yamanki. Teologia do antigo testamento: história, método e mensagem, São Paulo, Vida Nova, 2001.

(Pr. Julio Cezar da Silva Cindra)

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